
Patriarcas Abraão, ao centro, ladedos por Isaac e Jacob. Afresco de uma igreja ortodoxa em Maramures, na Transilvânia. Século 15
O que chama a atenção no afresco acima é a “gestação” dos patriarcas, que carregam em seus ventres os discípulos e a nova Igreja. Quem precisa de mulheres em um mundo de homens?
Abraão, o “Pai das três religiões” monoteístas: Judaísmo, Cristianismo e Islamismo, foi o primeiro patriarca, aquele que deu início ao Sistema Patriarcal. Ele também deu início à iconoclastia ao destruir os ídolos fabricados por seu pai, Tera, quando eles ainda moravam em Ur, na Mesopotâmia.
Como vimos no post que trata de Enheduanna, a primeira vítima, a Suma Sacerdotisa do Templo de Ur, filha de Sargão I da Babilônia, foi perseguida e banida por Naran-Sin, aquele que ocupou o trono do Império Akkadiano entre 2 255 e 2 218 aC, alguns séculos antes de Abraão sair de Ur, provavelmente em torno de 1 800 aC. Naquela época já estava em curso a chegada de uma divindade masculina, guerreira, ciumenta e vingativa, que buscava se impor sobre a Deusa Mãe, seus símbolos e seus atributos. O símbolo lunar foi substituído pelo solar, a dupla Vaca/Touro, símbolos femininos, foram substituídos pelo Carneiro, símbolo masculino.
Embora esta substituição estivesse em curso, as divindades femininas ainda mantinham grande poder. Contudo, começava a se estruturar a ideia de que só havia um deus e que o restante era resto. Que o paganismo era idólatra. Que o mais fraco deveria se sujeitar ao mais forte, ou seja, que a mulher deveria se submeter ao homem. Afinal, na História de Lilith, a "Lei" é que o mais forte fica sempre por cima!
Até onde se pode comprovar com documentos, as sementes do monoteísmo foram plantadas no tempo de Enhenduanna, em Ur, a mesma cidade de onde saiu Abraão depois de ter destruído os ídolos fabricados por seu pai. Ídolos que, provavelmente, representavam o princípio feminino, a Deusa Mãe.

http://documenta-akermariano.blogspot.com/2012/01/aniconism.html
Como ressalta Ivan Esperança Rocha, Professor da Universidade Estadual Paulista, nos ensinamentos judaicos nos Midrashs,
"Os ídolos não deviam ser apenas quebrados, mas jogados no Mar Morto para que não pudessem ser mais vistos ('Abodah Zarah 3,3). A madeira de uma Asherah não podia ser usada nem para aquecer-se (Pesahim, 25a). Para evitar qualquer contato com os idólatras, os judeus não podiam relacionar-se comercialmente com eles pelo menos três dias antes de suas festas cultuais ('Abodah Zarah 1,1). Ficava proibido caminhar sobre uma rua pavimentada com pedras que tinham sido utilizadas para construir o pedestal de um ídolo ('Abodah Zarah 50a). Aos sábados era proibido até mesmo ler o que estava escrito sob uma pintura ou estátua ('Abodah Zarah 149). Uma Asherah é uma árvore sob a qual se pratica um culto e, portanto, proibida. Se, no entanto, existir um altar de pedras sob ela, a árvore pode ser utilizada livremente ('Abodah Zarah 48a).
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Abraão - Akhenaton - Moisés
Abraão, Akhenton e Moisés são marcos importantes na transição das crenças politeístas para o monoteísmo. O politeísmo estava relacionado com as forças da Natureza que impregnavam os ritos de fertilidade, cujos símbolos representavam a Grande Mãe; já o monoteísmo marcava o advento do Deus Único. A transição do politeísmo ao monoteísmo não se deu de forma pacífica, muito ao contrário. Em nome do Deus Único guerras foram travadas, novas crenças foram instituídas, antigos símbolos ressignificados e novas representações foram elaboradas.
A nossa civilização judaico-cristã sempre nos fez crer que estes personagens pouco ou nada tinham em comum, que viveram e/ou governaram povos diferentes, como se cada uma dessas civilizações {Mesopotâmia, Egito e Israel} existisse dentro de uma bolha. Contudo, a ciência contemporânea vem demonstrando que em matéria de cultura, a manutenção das bolhas é tarefa difícil, conseguida somente através da repressão. Os fenômenos culturais acabam funcionando como uma correia de transmissão que, cedo ou tarde, faz com que a assimilação cultural acabe acontecendo, mesmo nas sociedades fechadas. Assim como as grandes muralhas não impediram as invasões bélicas, a repressão não impede o fenômeno da aculturação. Isso aconteceu no passado e acontece hoje de forma ainda mais intensa devido às novas tecnologias.
O contexto da Segunda Guerra Mundial impôs a necessidade de um conhecimento de cunho interdisciplinar, que culminou com a Revolução Tecnológica que estamos vivendo. Sob o patrocínio militar, tendo por base a pesquisa científica, foram criados inovadores esforços de guerra. Assim surgiu a internet, uma ferramenta de guerra que extrapolou a bolha militar para ser o motor de uma nova visão da realidade.
E, como disse Sigmund Freud, em Moisés e o Monoteísmo “é no contraste que se percebe as diferenças entre o politeísmo sem repressão e o monoteísmo persecutório”.
Como disse Freud, o monoteísmo é persecutório! É um sistema muito mais repressivo do que o politeísmo e Freud vai mostrando como isso funciona na mente das pessoas. Embora a psicanálise criada por ele tenha sido um avanço grandioso para compreensão dos mistérios da mente, Freud não foi capaz de compreender as causas que levaram ao esmagamento do paganismo através da imposição do monoteísmo. É possível que isto tenha ocorrido pelo fato de o “pai da psicanálise” não ter conseguido penetrar nos mistérios femininos. Embora houvesse uma profusão de deuses, o paganismo se caracterizava pelo culto à Grande Mãe, símbolo da Natureza. Já o monoteísmo se caracteriza pelo culto ao Pai e domínio deste sobre a Natureza, a mulher e os filhos, agora gerados por Ele, uma vez que a mulher foi defenestrada da vida do Deus Único.
Inegavelmente, Freud deu uma grande contribuição para a compreensão da mente humana, contudo, Freud é filho do seu tempo e do lugar onde nasceu. O mundo europeu de sua época era falocêntrico e Freud não conseguiu romper com esta tradição milenar. Sua dificuldade de pensar o universo feminino foi tanta que nas partes finais de sua obra ele sugeriu procurar nos artistas e nos poetas respostas mais verdadeiras para tentar superar aquilo que ele não havia conseguido teorizar sobre a feminilidade.
O criador da psicanálise criou algo revolucionário, que é ouvir o desejo íntimo das mulheres. Apesar desse fato monumental, Freud se manteve extremamente conservador na construção do sujeito feminino. A sexualidade feminina surge aos olhos do psicanalista vienense através de um filtro masculino, a ponto de dizer que "meninas são meninos com defeito de fabricação". Nelas falta algo que só os meninos têm.

Segundo Freud, a menina tem essa ferida por conta do seu sentimento de inferioridade ao se descobrir vítima de uma injustiça da natureza, a falta do pênis. Quanto aos meninos...


Parece que a pergunta “o que quer uma mulher” tem gerado uma ansiedade nos homens que é milenar, como provam os mitos do antigo Egito, que certamente Freud conhecia.
Diz o Mitografias:
Rá, o poderoso deus que veio a existência por si mesmo, o que fez o céu, a terra, a água, o que criou a vida, o fogo, os homens e deuses possuía tantos nomes que nem mesmo os deuses conheciam. Ísis, a grande Maga, de palavra hábil, mais hábil que um milhão de homens, se sobressaía sobre milhões de deuses, e era mais astuta que muito deles. Conhecia, como Rá, o senhor supremo. A deusa tramou em seu coração averiguar o nome secreto de Rá, o qual lhe dava o poder sobre o resto dos homens e dos deuses.
A cada dia, Rá surgia sobre sua barca do lado oriental do horizonte para realizar sua travessia pelos céus e, ao entardecer fazer sua viagem noturna pelas regiões de Duat, a qual ele iluminava com sua luz. No entanto, a cada dia o deus envelhecia um pouco mais. Quando atravessava as terras do Egito sua cabeça balançava, sua mandíbula tremulava e da sua boca caía a saliva que regava a terra.
Um dia, Ísis recolheu a saliva com sua mão, misturou-a com a terra e modelou uma serpente, que deu origem a primeira cobra. Não necessitou empregar sua magia para levar a cabo essa criação, porque na criatura se encontrava a própria substância divina de Rá. Ísis tomou a serpente inerte e a situou no caminho em que o deus fazia sua transição diária. Disse deus para aqueles que o seguiam:
Venham a mim, oh, vocês, que vieram a existência do meu corpo. Vocês, deuses que surgiram de mim. Que então saibam o que me aconteceu. Uma criatura mortal me feriu. Meu coração o pressentiu, mas não sei do que se trata, porque meus olhos não puderam vê-la, nem minhas mãos puderam tocá-la. É desconhecida entre tudo que eu criei. Nunca senti tal dor, não conheço nada tão mortal. Quando saí para ver minha obra e avançava pelas Duas Terras, algo me mordeu, mas não sei o que foi. Não é o fogo, nem a água, no entanto sinto o fogo em meu coração, meus membros tremulam e estremecem. Venham, filhos meus, deuses, venham a mim, aqueles que conhecem a glória das palavras e quem conheça sua mágica pronunciarão, os de poderosa influência que alcança o céu.
Todos acudiram ao chamado de Rá, e também o fez Ísis, a Grande Maga, com seu glorioso poder e eficaz palavra. Ísis disse:
Que é isso? O que foi que lhe sucedeu? Pai Divino, foi, talvez uma serpente que lhe transmitiu essa dor? Se assim é eu expulsarei a dor que te aflige e a destruirei com meus feitiços.
Rá disse:
Quando viajava pelo largo caminho, quando atravessava as Duas Terras, e os países estrangeiros, desejoso que meu coração percebe-se minha obra, uma serpente a qual não podia ver me mordeu. Sinto o frio em meu corpo como a água, sinto o calor do fogo, todos meus membros tremem e o suor corre pelo meu corpo. Me estremeço, meus olhos se encontram inseguros e não posso distinguir o céu. A umidade me alcança no rosto como nos quentes dias de verão.
Ísis novamente falou e agora sua voz era cálida e reconfortante:
Diga Senhor, vosso nome, oh divino pai, vosso verdadeiro nome, o nome secreto que só você conhece, porque somente viverá aquele que é chamado por seu verdadeiro nome.
E Rá lhe falou todos os nomes que possuía:
Sou o criador do Céu e da Terra, fui eu quem criou as montanhas e criou tudo que existe. Sou o que deu origem as Águas, fiz com que a Grande Inundação viesse a existência. Sou quem trabalhou o céu e as cavidades ocultas dos Dois Horizontes, dentro dos quais situei as almas dos deuses. Sou aquele que quando abre os olhos origina a luz e quando os fecha provoca a escuridão. Sou o aquele que criou as horas e assim os dias vieram a existência. Sou o que abre os festivais do ano, o criador do fluxo corrente das águas. Sou quem deu origem ao fogo para que os trabalhos o homem pudessem levar a cabo. Sou Jepri pela manhã, Rá ao meio dia e Atum pela tarde.
Mas Ísis já conhecia todos esses nomes, no entanto Rá seguia guardando dentro de si seu nome secreto. Enquanto, a dor crescia e o veneno corria através de suas veias como o fogo. Então Ísis se dirigiu novamente a Rá dizendo-lhe:
Não são esses os nomes que necessito para que seja curado, é necessário que me diga seu nome secreto, aquele que só você conhece, e o veneno será expulso. Só viverá aquele que manifesta seu verdadeiro nome.
Rá, contorcido pela dor que lhe queimava, revelou seu nome secreto. Então Ísis, a grandiosa dos feitiços, disse:
Vá embora veneno! Sai fora de Rá! Oh olho de Hórus, sai fora do Deus que deu origem a vida por meio de suas palavras. Sou eu quem realiza esse feitiço, sou eu quem envia para fora o poderoso veneno. O grande Deus me entregou seu nome. Rá viverá e o veneno morrerá!
Assim foi como Ísis, a Senhora dos Deuses, conheceu Rá pelo próprio nome.
https://www.mitografias.com.br/2016/03/o-nome-secreto-de-ra/
Este mito traduz a mensagem implícita de que toda mulher pode usar seu conhecimento e sabedoria para “enganar”. Se uma mulher pode fazer isso com o deus, imagine com os homens!
No Egito antigo, aqueles que se ocupavam dos animais venenosos eram chamados de magos. Eles tinham conhecimentos, utilizavam fórmulas cuja manipulação requeria qualificações excepcionais. Porém, o remédio que pode curar também pode matar! Por isso a noção de magia ganhou um significado polarizado entre o bem e o mal.
Conhecida como Senhora da Magia, Ísis acabou extrapolando as fronteiras do Egito chegando ao Império Romano. Essa exportação da deusa trouxe consequências importantes para o mundo ocidental, uma delas é a crença que a deusa - assim como as mulheres - dominavam e praticavam tanto a arte de curar, bem como a arte de matar sem deixar rastros. Esta ambiguidade entre bem/mal criou um clima de suspeição tamanho que serviu para a Igreja Católica acusar as mulheres de magia, feitiçaria e bruxaria, numa época em que raizeiras e parteiras foram mortas aos milhares.
No Ocidente o conceito de magia ganhou um significado dúbio, porém, mais maléfico que benéfico.
As palavras magia, mago e mágico vêm do latim magus, através do grego μάγος, que vem do antigo persa maguš. (𐎶𐎦𐎢𐏁, mago).[12] Em persa antigo magu- é derivado do protoindo-europeu *magh (poder). O termo persa pode ter levado ao sinítico antigo *Mγag (mago ou xamã).[13] A forma persa antiga parece ter permeado as línguas semíticas antigas como o magosh hebraico talmúdico, o amgusha aramaico ("mago") e os maghdim caldeus ("sabedoria e filosofia"); do século I a.C. em diante, os magusai sírios ganharam notoriedade como mágicos e adivinhos.
Mair, Victor H. (2015). «Old Sinitic *Mγag, Old Persian Maguš, and English "Magician"».
https://pt.wikipedia.org/wiki/Magia#CITEREFMair2015
Por volta do 5º século aC, a palavra grega mageia fazia referência a sacerdotes persas do grupo Magi (os magoi, plural de mago). Sua utilização pelos gregos envolveu contornos pejorativos, posterirmente adotados por Roma ao utilizar as formas latinas magus e magia para designar, respectivamente, o praticante e sua arte. Através desse caminho o Ocidente cristão herdou uma concepção negativa da magia, acusando os seus praticantes de fazerem uso da coerção de forças e seres sobrenaturais para atingir seus próprios fins. A Igreja perseguiu e matou milhares de pessoas, sobretudo mulheres, ao acusá-las de praticar magia e bruxaria. A arte de cuidar, curar e trazer novos seres humanos ao mundo, passou a ser duramente perseguida e o resultado foram as fogueiras, depois de muita tortura.

https://commons.wikimedia.org/wiki/File:098-accused_of_witchcraft.jpg
Em excelente artigo, Marie Mougin esclarece que A caça às bruxas não foi obra da Idade Média. Frequentemente associamos as bruxas aos tempos medievais ... erroneamente.
A face oculta do Renascimento, foi durante esta revolução considerada humanista, racional e iluminada que se alastrou a caça às bruxas! Como se fosse preciso "matar a mulher" para criar "o homem moderno" ... As bruxas não são o negócio da Idade Média, mas dos tempos modernos. Mona Chollet, também afirmou que foi apenas durante o Renascimento que a caça às bruxas realmente aconteceu. Ela lembra que o mundo ocidental há muito associa as bruxas com a obscura Idade Média, erroneamente, enquanto foi durante os tempos gloriosos e "humanistas" da Renascença que dezenas de milhares de mulheres foram executadas, acusadas de bruxaria.
Todas as práticas medicinais de curandeiros e parteiras foram descritas como "mágicas" ou decorrentes de superstição. Qualificadores que, portanto, abriram a porta para a perseguição porque as bruxas se tornaram "hereges". Magia não é "sagrada", superstição não é "religião" e essas mulheres são automaticamente ligadas ao Maligno e se tornam "bruxas".
As piras e as perseguições às bruxas são a outra face do Renascimento. A caça às bruxas se deu nos bastidores do nascimento do Humanismo, do surgimento da razão e do mundo racional moderno. Essa ideia de barbárie, como irmã gêmea da razão, foi teorizada notavelmente por René Girard, autor de La Violence et le Sacré {A Violencia e o Sagrado}“Se há uma ordem moral nas sociedades, ela deve ser o resultado de uma crise anterior, deve ser. A resolução desta crise . “ Hoje, muitos historiadores e filósofos concordam que a caça às bruxas foi de alguma forma o preço a pagar pelo nascimento do mundo moderno, racional e informado, como se ele tivesse que matar as velhas para criar o novo homem ...
https://www.franceinter.fr/culture/la-chasse-aux-sorcieres-la-face-cachee-de-la-renaissance
A repressão praticada contra a mulher não pode ser compreendida fora das narrativas históricas promovidas pelas crenças religiosas características das diversas épocas e civilizações. A misogenia não começou no medievo, ela veio se constituindo milênios antes, quando o monoteísmo se voltou contra a veneração de deuses e deusas e dos seus símbolos e chamou a isso de ‘idolatria”. Essa palavra passou a demarcar a linha de separação os que acreditam e os demais. Pejorativamente, idólatra é aquele que cultua ou que adora ídolos e ídolo é tudo o que está para além do DEUS ÚNICO.

Criação do Sol e da Lua – Capela Sistina – Wikimedia Commons
O Deus monoteísta é ciumento e vingativo se seus seguidores o abandonarem, pois nesse caso eram ameaçados de não mais receberem seu “livramento”.
Não terás outros deuses diante de mim. Êxodo 20:3
Não seguireis outros deuses, os dos povos que houver ao redor de vós. Dt 6:14
Lembrai-vos [...] que eu sou Deus, e não há outro Deus, não há outro semelhante a mim.Eu sou o Senhor, e não há outro. Fora de mim não há Deus. Isaías 45:5 e 46:9
Contudo vós me deixastes e servistes a outros deuses; pelo que não vos livrarei mais. Juízes 10:13
Durante milênios as mulheres dominaram a arte de cuidar, que envolvia a arte de curar. Elas dominavam o conhecimento das ervas e das árvores, das plantas e plantações. Alguns dizem que elas inventaram a agricultura. As mulheres sempre estiveram em profundo contato com a Natureza, que sempre foi sagrada. O politeísmo refletia todas as possibilidades oferecidas pela Mãe Natureza. Havia uma profusão de deusas e deuses e a floresta era o templo por excelência. Com o surgimento do monoteísmo, as florestas foram devastadas, as mulheres demonizadas, a sabedoria dos remédios se tornou bruxaria e Deus foi reduzido à imagem e semelhança do homem: pequeno, único, macho, ciumento, vingativo...

Wikimedia Commons
No politeísmo, a divindade era feminina, o corpo feminino era símbolo da magia, retrato da Mãe Natureza e do próprio universo.
Certamente, o patriarcalismo não começou no Egito, quando o faraó Akhenaton declarou sua crença em Aton, criando o monoteísmo. Como já se viu, a dominação masculina pode ser rastreada desde muito antes, na época da perseguição a Enheduanna, em Ur, na Mesopotâmia, e talvez antes dela. A transformação do culto à Deusa Mãe no culto ao Deus-Pai não veio de uma ruptura, em uma época precisa, mas resultou de um processo progressivo em que a mulher foi perdendo seu status de Ser, para ser transformada em objeto. A investida contra a mulher começou pelo ataque aos seus símbolos, que gradativamente foram sendo usurpados pelo homem, ao mesmo tempo em que suas habilidades intuitivas e de cura passaram a ser demonizadas e usurpadas por eles.
Não há dúvida de que o politeísmo garantia um lugar destacado à mulher, afirma Sigmund Freud, lugar este que foi sendo perdido até se completar o que ele chama de ‘passagem ao patriarcado’.
Quanto à Freud, diz Marcos Leandro Klipan, por mais retrógradas que nos pareçam hoje as teses do “Pai da Psicanálise”, não se pode negar que ele foi o primeiro a se interessar pelas histórias das mulheres, vítimas da repressão promovida pela falsa moral vitoriana. Acusadas de histeria, Freud viu nas mulheres desejos e anseios aos quais elas não podiam dar vazão, além de muita angústia, por não encontrarem qualquer saída. Com base na escuta dessas mulheres, Freud descobriu e conceituou o inconsciente, lugar que abriga fantasias reprimidas, fundamento da Teoria Psicanalítica. Se o homem Freud foi conservador, sua prática como psicanalista foi revolucionária. Entre as acusações já feitas ao médico e criador da psicanálise, a mais leve afirma que ele era um patriarca conservador cuja visão do sexo feminino reduzia a mulher à função de “serva reprodutora da espécie”. Diante de interpretações como essas, os movimentos feministas mais radicais incendiaram a reputação de Freud a partir da década de 1970 e o colocaram no banco dos réus. Afirmavam que ele criara um modelo teórico universal para as mulheres motivado por sua própria misoginia. Hoje se busca compreender que todos são fruto da sua época, inclusive os grandes cientistas.
A psicanalista Maria Rita Kehl diz que Freud percebeu a fumaça, mas não foi capaz de localizar o fogo. Ele não conseguiu compreender a completa ausência de alternativas para a mulher da era vitoriana, educada para o casamento, clausura doméstica e os “prazeres” do aleitamento dos incontáveis filhos. A decepção com o casamento e o tédio conjugal receberam o nome de histeria. “A histeria é a salvação das mulheres”, escreveu Dostoiévski em Os irmãos Karamázov. Sob outros nomes, a insatisfação sexual e conjugal das mulheres foi o tema central dos grandes romances do século 19, em que o tema da mulher casada, insatisfeita e infiel, ocupou o centro do enredo. Assim, a obra freudiana, elaborada com toda a coragem investigativa de seu autor, sofreu as limitações morais e ideológicas da época em que foi escrita. Apesar disso, todos sabem o quanto a liberação sexual promovida pela contracultura das décadas de 1960, 1970 do século passado, da qual desfrutamos hoje, se deve à ousadia do criador da psicanálise.
Se o sistema patriarcal e o monoteísmo não nasceram simultaneamente, juntos eles fizeram muita perversidade com as mulheres e com a Natureza, cujas reverberações ainda são sentidas até os dias de hoje.

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